A Bíblia, o Vírus e o Direito Eleitoral em 2020

Artigo Direito Eleitoral - Flávio Freire
direito eleitoral

Está escrito no Evangelho de Lucas (10:25-37) a parábola do Bom Samaritano, contada por Jesus para ilustrar que a compaixão deveria se estender a todas as pessoas nos momentos de dificuldade. Não, este não é um manifesto religioso, embora aborde a licitude do exercício de crenças religiosas em tempos apocalípticos.

Explico: é fato notório, no sentido técnico da expressão, a devastação que o vírus COVID-19 vem provocando nos diversos sistemas de saúde e causando a fortes implicações econômicas em escala mundial.

No caso do Brasil, essa pandemia lança seus tentáculos em diversas direções, e se agrava, sobretudo, pela proximidade do período eleitoral, considerando que no ano de 2020 acontecem, no mês de outubro, as eleições nos 5.570 municípios brasileiros, mobilizando milhares de candidatos e milhões de eleitores que exercerão seus direitos constitucionais de votarem e serem votados.

Para ser votado, o pré-candidato deve estar apto, significando que ele deve reunir uma série de requisitos constitucionais denominados condições de elegibilidade, sendo exemplo o pleno exercício dos direitos políticos. Também o pré-candidato deve evitar a atração de situações que lhe impeçam a candidatura denominadas causas de inelegibilidade, sendo exemplos as condenações, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de oito anos a contar da eleição. 

Esses são exemplos singelos que o pré-candidato deve observar, para que o Direito Eleitoral permita que seu nome seja inserido na urna eletrônica e seus votos sejam contabilizados. O cidadão, portanto, que pretenda submeter seu nome à escolha popular deve também se preocupar com a pré-campanha, pois nesse período que antecede o pleito é proibido pedir voto e arrecadas ou gastar recursos financeiros destinados à obtenção do voto.

Eis que no fim do ano de 2019 surge uma doença de proporções épicas em escala mundial que vem causando, além da mortalidade em massa, o desemprego e a fome. Desse cenário é provável, e até necessário, o afloramento do espírito cristão de ajuda ao próximo – e peço venia aos praticantes de outras fés aqui não mencionadas.

A dúvida que se coloca neste momento diz respeito a possibilidade de mandatários do poder prestarem auxílios de natureza assistencial àqueles cidadãos que deles necessitam, sob o aspecto do direito eleitoral. O art. 73, § 10, da Lei das Eleições, incluído pela Lei 11.300, de 2006, dispõe que “fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa”. Seu descumprimento é apenado com a cassação do registro ou do diploma e com multa, que pode variar de cinco a cem mil UFIR.

Essa norma traz três exceções que permitem a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios em ano eleitoral. São elas: 1ª) a decretação da calamidade pública, 2ª) a decretação do estado de emergência e 3ª) o cumprimento de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

Em plena pandemia provocada pelo COVID-19 é provável que os municípios não consigam atender a carência social pela 3ª exceção legal, já que ela depende de planejamento prévio e início da execução orçamentária no ano anterior ao eleitoral. As alternativas que restam são a 1ª e a 2ª exceções.

Decretar o estado de emergência ou de calamidade depende, por parte do Prefeito, da observância da realidade de fato, plenamente justificável no momento vivenciado pelos brasileiros, pois o vírus COVID-19 causa profundos impactos nos diversos estratos sociais. Especificamente para a calamidade, o art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal permite ao Prefeito instituí-la via Decreto, mas seus efeitos serão produzidos após sua ratificação pela Assembleia Legislativa.

Existe também outra norma eleitoral que deve ser observada e que proíbe ao agente público “fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público”, norma essa disposta no art. 73, IV, da Lei das Eleições, posto que também apena o responsável com a cassação do registro ou do diploma e com multa  de cinco a cem mil UFIR.

E se o agente público promover a arrecadação do benefício assistencial sem a utilização de dinheiro público? Em muitos municípios esta é uma realidade, posto que agentes públicos estão fomentando a doação de gêneros alimentícios, medicamentosos e de higiene pessoal pela sociedade civil. Nesse caso, como não envolve dinheiro público, não há que se falar em conduta vedada, cuja interpretação deve ocorrer de forma restritiva por impor sanções aos agentes. Por óbvio, não custa lembrar que a entrega dos bens não deve ser condicionada à obtenção de votos, a fim de que não caracterize ilícito.

E a publicidade desses atos seria permitida? Entendo pela possibilidade, desde que seja feita nas redes sociais do próprio benfeitor e não envolva o gasto de dinheiro público, porquanto a distribuição gratuita dos bens de caráter social não foi custeada ou subvencionada pelo Poder Público. Relembre-se que os legitimados podem acompanhar a execução das ações que tenham ou não gasto recurso público e pleitear a punição dos responsáveis pelos excessos.

Concluindo, embora muitos taxem o ato benevolente de oportunismo – embora acredito que ele realmente existe, mas seja a exceção – a população brasileira necessita de apoio nesse momento. Não é todo município que pode dispender grandes recursos públicos para o imediato atendimento à população, e a população, por sua vez, não tem condições de enfrentar a burocracia estatal, com potencial de agravamento dessa crise humanitária. Creio, porém, que em todo município existe o espírito cristão na sociedade civil que possa ser capitaneado por agentes políticos, seja fomentando as doações, seja organizando os caminhos para que as mais variadas espécies de auxílios cheguem à população que deles necessitam.

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